terça-feira, 20 de julho de 2010

Uma prova topológica para o Teorema de Cayley-Hamilton

O Teorema de Cayley-Hamilton é bastante conhecido e muito usado em Álgebra Linear. Existem diversas formas de demonstrá-lo, mas na minha humilde opinião,  a que apresentarei aqui é a mais bonita. Neste artigo, usarei um corpo  genérico , que você pode pensar como ou , se preferir. Este teorema pode ser enunciado da seguinte forma:

Teorema. Seja uma matriz quadrada de ordem , com coeficientes num corpo , e seu polinômio característico. Então

 


Uma possível forma de começar a atacar este teorema é provando-o para casos particulares. Para matrizes diagonais, a demonstração é trivial. O próximo passo seria mostrar para matrizes diagonalizáveis:

Demonstração para matrizes diagonalizáveis. Se é diagonalizável, então temos uma base de autovetores de . Se , então o polinômio característico de se fatora como


Assim, é claro que cada anula a matriz . Como é base, então .

No entanto, a partir daqui é difícil generalizar a demonstração para qualquer matriz. Resolveremos este problema usando continuidade. Para tanto, usaremos uma topologia pouco conhecida mas muito utilizada em Álgebra, a Topologia de Zariski. Admitiremos, a partir daqui, um pouco de conhecimento sobre topologia básica e teoria de anéis (basicamente, familiaridade com ideais).

Se você não conhece a topologia de Zariski, veja aqui o artigo do Gabriel. A demonstração do Teorema de Cayley-Hamilton utilizando esta topologia é bem simples e curta, mas precisaremos de alguns resultados simples que provarei em seguida. Vamos denotar por , isto é, o conjunto dos pontos de que não se anulam em algum polinômio de e, se denotaremos onde é o ideal gerado por .

Propriedades da Topologia de Zariski.  Seja o espaço afim de dimensão . Temos:
(a) Os conjuntos , com , formam uma base para a topologia de Zariski em .
(b) Todo aberto na topologia de Zariski é denso.
(c) Qualquer função que é polinomial em cada coordenada é contínua em relação à topologia de Zariski.

Demonstração. (a) Basta ver que, para ideal de ,


Obs: Além disso como todo ideal de é finitamente gerado, pelo Teorema da base de Hilbert, todo aberto é compacto! Note que isso é bem surpreendente, pois, em espaços Haussdorff, compactos sempre são fechados.

(b) É suficiente mostrar a afirmação para a base desta topologia. Considere, então, com e tome . Temos que mostrar que é ponto de acumulação de . Para isso, suponha contendo onde . Agora basta notar que


Logo, como (prove!), existe . Claramente, e segue o item (b).

(c) Novamente, basta mostrar para uma base da topologia. Dizer que é polinomial em cada coordenada é dizer que, para ,


onde . Considere o aberto com . Denotando por , temos que


Agora basta observar que , para


Assim, é aberto e, portanto, é contínua.

Precisamos de apenas mais um pré-requisito: a noção de discriminante de um polinômio. Este conceito generaliza aquele das equações de segundo grau. Dado um polinômio , o discriminante de é dado pela expressão


onde é alguma constante não nula (que depende dos coeficientes do polinômio mas não nos interessa aqui) e os 's são as raízes de . Assim, é imediato ver que tem raízes múltiplas se, e somente se, o discriminante de se anula. O discriminante também pode ser definido como o determinante de uma matriz bem grande cujas entradas são coeficientes do polinômio. Lembre-se disso.

Agora estamos prontos para a nossa demonstração do Teorema de Cayley-Hamilton como uma brilhante aplicação da Topologia de Zariski. Como esta topologia não é familiar a muita gente, tentarei fazer esta demonstração bem detalhada.

Demonstração topológica do Teorema de Cayley-Hamilton. Seja . Como é quadrada, de ordem , podemos enxergar como um ponto em . Além disso, o discriminante de pode ser visto como um polinômio em variáveis avaliado nos coeficientes de pois os coeficientes de são polinômios nas entradas de e o discrimininante de é um polinômio nos coeficientes de [1].

Assim, podemos falar de um polinômio chamado discriminante [2]. Se o discriminante de é não nulo, então tem raízes distintas e é diagonalizável (e já sabemos que o teorema vale para este caso!). O conjunto das matrizes cujo discriminante de seu polinômio característico é não nulo, é, portanto, , que é aberto na Topologia de Zariski e, consequentemente, denso em . Agora, considere o mapa


Note que é contínua pois é polinomial em cada coordenada de . Como, para toda , temos que e é denso, então para qualquer matriz de ordem [3].

Supimpa, não? A história não para aqui. Você pode aproveitar estas ideias e brincar de demonstrar teoremas de Álgebra Linear usando a Topologia de Zariski, ela é extremamente poderosa para isso. Tente fazer o seguinte desafio:

Desafio. Utilizando ideias similares à prova anterior, mostre que dadas duas matrizes, de ordem , e quaisquer, tem-se que o polinômio característico de é igual ao polinômio característico de .

Desta forma, espero que, assim como eu, você tenha aprendido uma grande lição:

Mensagem de Sabedoria

"Se as coisas estão difíceis e parecem não ter solução, lembre-se: você pode estar utilizando a topologia errada"

E uma ótima piada:



Notas:

[1] Se você não entendeu essa parte, lembre-se do "lembre-se disso".

[2] Para ilustrar, façamos o caso . Se


então


e que podemos considerar como o polinômio


avaliado em . Note que o polinômio acima é sempre o mesmo para qualquer matriz .

[3] Update! O Gabriel fez uma observação muito pertinente. Temos que tomar um pouco de cuidado ao afirmar que se duas funções contínuas coincidem num denso, então elas são iguais. Em geral, isto vale quando o contra-domínio é Hausdorff. No nosso caso, o contra-domínio está munido da topologia de Zariski, que não é Hausforff. Segue o argumento do Gabriel:

"No entanto, a topologia de Zariski em é T1. Além disso, vale sempre num subconjunto denso. Usando o fato da topologia ser T1, temos que é fechado, logo, como é contínua, é fechado e, mais, contém um conjunto denso. Logo é o domínio inteiro."




9 comentários:

Gabriel Martins disse...

Ownage
Prova muito bonita. =]

Thiago S. Mosqueiro disse...

Realmente belo post. Este teorema é utilizado numa definição de uma função de matrizes, certo? Por exemplo, f(A) = exp(A).Não consigo lembrar direito onde vi isso, mas lembro que era bonito e dava para entender bem.

Thiago S. Mosqueiro disse...

Faltou a pergunta final: poderia escrever algo sobre?

Gabriel Martins disse...

Esse teorema é bem importante e é usado pra provar vários teoremas de Álgebra linear

Por exemplo ele mostra que o polinômio mínimo de uma matriz sempre divide seu polinômio característico.
E nós usamos o polinômio mínimo pra calcular potências de matrizes.
Que nos deixa calcular então o que você disse, a exponencial de uma matriz

Que serve pra resolver uns sistemas lineares autônomos de equações diferenciais etc.

De repente eu posto um dia sobre isso, mas por enquanto fica esse comentário tapa-buraco aqui. =P

Thiago S. Mosqueiro disse...

Isso! Esse era o caminho: calcular potências de matrizes, usando algum fato de que havia uma potência n que poderia ser descrita como uma potência menor k, com um n mínimo. A partir dae pode-se escrever as funções, não?

Bom, essa foi minha sugestão apenas : ) Se um dia se interessar.

Anônimo disse...

Cara, esse post ficou muito irado!!! A demonstração que eu sabia(a classica) de C-H era + simples, mas essa é muuuito mais bonita mesmo.

Gabriel Martins disse...

Que demonstração que você conhecia?
A outra que eu conheço é meio complicada usa aquela matriz que é a transposta da cofatora, acho meio feinha. hehe

Essa eu acho mais natural, apesar de usar uma topologia diferente =P

Anônimo disse...

alguém sabe de qual livro foi retirado essa demonstração, pelo menos a parte relacionada a matrizes diagonalizaveis?

Gabriel Martins disse...

A demonstração para diagonalizáveis você acha em qualquer livro bom de álgebra linear, como o Lang e o Hoffman (esses são os que eu tenho certeza que tem de memória). =P
A parte usando Zariski não sei em que livro você pode achar.